terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Mangueiras..

Sentia-me eufórico, paralisado. Nunca soube reagir bem a uma mangueira que esguichasse emoções por sobre o muro do vizinho. Um jato todo cheio de cores, texturas, que revezava, nervoso, com um ocasional filete, mais transparente. Pensei em comprar uma dessas pra mim; achei até, algum dia desses, que eu tinha visto uma promoção no Politeshop. Entretanto, percebi que se a dita cuja fosse minha, já não ia ser mais tão interessante.

Já vi essa mangueira diversas vezes, até mesmo quando chovia, ou quando não havia plantas. Nunca havia visto, porém, o vizinho. Ou melhor, vizinha. Foi deveras uma surpresa, ou talvez nem tanto. Não sabia a real razão de tanta água no meu quintal, na cadeira onde me sentava, na casinha do cachorro. Primeiro tive raiva, depois.. acabei entretido, ensopado.

Quebrei a cabeça, derreti a glia, bati o coração mais forte, tudo em busca de respostas. Todavia, consoante à recorrente situação das inúmeras e confusas tardes molhadas, não pude obter as explicações que eu queria. Não que fosse salvar a Terra do apocalipse, ou que me garantisse tralalá zilhões de dinheiros da mega-sena. Só queria saber o porquê dessa mangueira.

Ameacei, soquei, amassei, xinguei e... nada. Talvez meu coração fosse sinceramente ignorante, talvez eu estivesse só perdendo tempo. Desisti do meu próprio enigma, do porquê de tanto umidade. Precisei de uma vizinha teimosa para entender que, por mais desassossegada que fosse a minha índole indagativa, fui feito não para entender, nem explicar, mas sim para algo muito menos nobre, mais elementar. Nasci para me molhar.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Infecto-culto-contagiosa

O ar rareou e tudo se tornou denso. O bom moço olhou para os lados, desesperado por alguma saída. Não conseguia gritar, vomitava palavras arfantes em seco. O terror tomou-lhe, por fim. Invadia-lhe como uma grossa árvore, enraizando-se nas mais profundas entranhas do rapaz. Quando as vinhas verdes já figuravam em todos os seus refúgios, a calma acomodou-se.

Já infectada, a vítima pôde ler em seu reflexo o que havia acontecido. Tornou-se escrava de um amor incondicional e sempre insuficiente, uma paixão inegável e inafiançável. Olhou pela janela e viu a cor das paredes, os tons da literatura, os semblantes da música. Ouviu o grito das estátuas, os lamuries do Cinema, as sinfonias do teatro.

Nascia um vício, uma necessidade. Nascia artista e poeta. Nascia nele, enfim, a Arte.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Pingo no i

Era tudo preto. Viscoso. Melado. Não sabia onde estava, nem como fui parar lá. Podia ser petróleo, ou piche, não sei. Tentei nadar, mexer os braços, mas de nada ajudava, só fazia-me afundar mais e mais. Desisti e olhei em volta. Um carpete grosso cobria todos os horizontes que eu pensei distinguir.

Algo sólido me acertou. Sorri com a lembrança dos quarenta e tantos filmes de tubarão. Tateei o objeto, e pareceu-me seguro o suficiente. Abracei-o e suspirei tranquilamente. Estava feliz. Em um poço fétido e inescapável, rodeado por infinitos galões de preto-sei-lá-o-que, eu estava seguro.

Tentei subir no meu apoio, ver mais, mas não consegui achar nenhum jeito para fazê-lo. Atestei que se tratava de algo com um formato conhecido; se bem me recordo, aquilo era um A. Mal me posicionei novamente, recostado àquela letra, e já me aparecia outra, dançando um vai e vêm das diferenças de densidade.

Um O quase me atingiu, um M estacionou-se ao meu lado. As letras pareciam tão leves, dispostas, prontas para serem usadas. Depois de muito lutar com um R minúsculo, que se debatia contra a tinta preta, consegui sentar no derrotado. Era tudo tão calmo, parado. Até a brisa era monocromática, e pequenas gotículas escuras tingiam minha testa.

As letras aglutinavam-se em sílabas, artigos, preposições e, raramente, em conjunções. Fiquei imaginando para onde todas iriam. Talvez fossem tornar-se um recado de geladeira, ou uma assinatura de contrato. Talvez fizessem parte de uma resposta de vestibular, ou do rascunho de um doutorado. Talvez até uma carta de amor, ou, tragicamente, uma de suicídio.

Ri-me com os destinos incertos. Tão incertos quanto as esquinas que nós não cruzamos na vida desperdiçada do dia a dia. Prometi a mim mesmo que jamais deixaria as letras perderem qualquer caminho que fosse, que encontrariam o sentido procurado por mim.

Uma ponta metálica, refletindo o preto-veludo, começou a sugar tudo e todas para dentro. Logo antes de também ser tragado pelo bico da caneta, achei ter visto um A juntar-se com um MOR. Pouco importava, em 2 segundos já estava no papel. Haha. Foi assim o dia em que me tornei um pingo no i, bem no meio da paixão.

domingo, 28 de novembro de 2010

Deixe-me levantar..

De certa forma, fiquei contente em estar com a mochila. Ela estava deveras pesada, mas pelo menos eu podia apertar suas alças, empurrando-as para frente, fazendo com que ela mesma me levasse. Não chovia, infelizmente. Se olhasse para o céu, certamente veria abutres rondando-me. O calor estava intenso. Eu suava. Ainda assim, agradecia minha mochila. É tão confortante ter o que segurar, evitando que as mãos dancem sozinhas, bobas, desgovernadas.

Resolvi sentar. O degrau respondeu-me, literalmente, com um certo desconforto. As pessoas arrastavam-se, lambiam a calçada com os pés. Lambiam, também, o suor que escorria-lhes a face. Nojento não, cômodo.. Demorou certo tempo até eu reparar na silhueta. Perguntei-me se realmente valia a pena levantar, o degrau já estava até gostando de mim... Apertei minha mochila, e ela fez que sim. Levantei.

O cabelo, idêntico. A altura, também. O perfume, ainda mais. Continuei. Ela virou-se. Virou-se. Virou-se. Era ela. Não, não era ela. Quando a moça de fato virou, ao pé do semáforo e não em minha mente, segurei o nó raivoso na garganta. Os olhos não eram os mesmos. Nem o nariz fino. Os lábios vermelhos, muito menos. Ah, aquele vermelho.

Vermelho, ela andou. Andou e me deixou para trás. Apertei as alças, e achei outro degrau. Maldito desconforto. "Tomando cabelo por olhos fechados a transbordar aquela cor". Falando nisso, outro cabelo, deixe-me levantar..

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Alguéns, outrens e massinhas

Existe uma perceptível diferença entre ser uma massinha de modelar com a qual cansaram de brincar e um alguém. Um alguém pode não ser comum o suficiente para camuflar-se nas faixas de pedestre. Um alguém pode vir a falhar miseravelmente na missão de ser incomum o suficiente para imortalizar-se nas areias da ampulheta.

Em ambos os casos, além de tantos outros que trombam com as pessoas no movimentado Destino, não há escapatória. Tornar-se-á um outrem. Eu não sou um outrem, apenas tornei-me um. Subitamente, senti uma pontada de inveja das massinhas. Pelo menos, às vezes, moldam-nas. Parece, inexplicavelmente, mais fácil do que eu escolher uma cor e um formato para mim mesmo.

É, estou outrem. E você?